domingo, 31 de maio de 2009

A Crise , O Trauma - O Luto


"Embora saibamos que depois de uma perda dessas o estado agudo do luto abrandará, sabemos também que continuaremos inconsoláveis e não encontraremos nunca um substituto. Não importa o que venha preencher a lacuna e, mesmo que esta seja totalmente preenchida, ainda assim alguma coisa permanecerá. É a única maneira de perpetuar aquele amor que não desejamos abandonar."

Freud


Inicia assim o livro de José Eduardo Rebelo - Desatar o nó do luto. Este autor fala sobre a perda de entes queridos e dos processos inerentes ao luto. Enfatiza a questão dos laços afectivos como essenciais para a nossa vida emocional e debruça-se essencialmente no que acontece quando estes são quebrados de forma inesperada. Ora aqui a questão da crise e do trauma assume um papel preponderante, mas mais preponderante ainda é a questão do aparelho psíquico para pensar os pensamentos, pois tal como referiu Bion (vide post Ana Almeida) o trauma e a sua gravidade dependem da (in)capacidade para fazer face às exigencias impostas; neste caso para fazer o luto e ultrapassá-lo.

O conceito de luto "fazer o luto" aplica-se a várias situações da nossa vida, querendo dizer que é a necessidade do indivíduo em viver uma crise, em viver sentimentos confusos, contraditórios, que oscilam entre apatia, decepção, raiva... para posteriormente ultrapassá-la, e isto depende inevitavelmente das condicionantes internas de cada um.


Tal como nos diz José Eduardo Rebelo "Todo o processo que medeia entre a perda e a reabilitação para a vida exige um período de demora: é o tempo do luto. Este terá que ser percorrido até que a realidade predomine, até que aceitemos que todos os vínculos que estabelecemos com alguém, tão querido, só podiam ser usufruidos na sua presença....Só assim recuperaremos a paz de espírito, uma tranquilidade íntima, indispensável para prosseguir a vida na sua plenitude."


Este seguir a vida na sua plenitude refere-se ao viver, mas ultrapassar a crise e não se deixar absorver pela dor e tristeza conduzindo a um trauma psíquico.

“As crianças doentes da alma desistem de olhar”

“As crianças doentes da alma desistem de olhar”, afirmou Teresa Ferreira no livro ”Em defesa da criança”, que reúne os seus textos. Gostava de citar o que a autora considerava serem os quatro direitos de um bebé que vai nascer:
"1- Direito a ser desejado por ambos os pais
2- Direito a uma mãe disponível
3- Direito a um pai presente
4- Direito a um espaço (quarto de criança na casa de habitação)"
A concretização destes quatro direitos significa que os pais são adultos desejantes, o bebé experimenta repetidamente no tempo uma relação gratificante/securizante com a mãe, o pai aparece como um terceiro elemento de realidade que permite a evolução da relação simbiótica mãe-bebé, abrindo-a para o exterior, e o bebé tem um espaço seu que lhe permite a separação e a construção dos limites da sua interioridade.

Partindo deste principio, poderemos prever que:
- se os direitos forem assegurados, o olhar da criança será curioso e confiante, porque se estabelecerá um equilíbrio de base, organizando-se a capacidade de pensar e fantasiar. A criança poderá fazer face às frustrações, porque terá à disposição recursos internos criativos que lhe permitirão lidar com a realidade externa boa ou má e adaptar-se; e
- se os direitos não forem assegurados, o bebé crescerá inseguro e o risco de desmoronamento perante as crises será elevado. Não existindo recursos suficientes na mente para lidar com a crise e ultrapassá-la de forma maturativa, esta poderá ser vivida como traumatizante. O olhar tenderá a esvaziar-se de afecto e sentido.

Mais tarde, perante o sofrimento persistente, a procura de ajuda terapêutica surgirá como uma possibilidade de reconstrução. Tal como já referido num post anterior, neste processo psico-terapêutico é essencial a fé de que no par (terapeuta/paciente) se poderá compreender o que se está a passar com o paciente. Enquanto o paciente se sente desesperançado, desvitalizado, desconfiado, o terapeuta deverá manter a esperança de que será possível fazer ligações entre afectos e pensamentos e tecer uma "trama" segura entre o Eu e o Outro.

Deixo-vos com uma curta-metragem que apela para a capacidade de olhar e nos deixarmos tocar emocionalmente pelo Outro.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Trauma e crise


A primeira associação de ideias que fiz com a palavra TRAUMA, talvez porque há dias estive a ler umas coisas sobre educação, foi com o célebre Dr. Benjamim Spock, pediatra americano, autor de livros sobre a educação infantil, que defendia que não se deveria repreender as crianças quando se portavam mal, porque isso iria criar-lhes traumas. Evidentemente que o alcance das suas palavras só foi possível devido a todo um enquadramento histórico e social, mas a verdade é inspiraram várias gerações de pais, até hoje.

Se acrescentarmos que hoje os pais estão cada vez mais ocupados com as suas próprias ambições e encaram cada vez mais os filhos como um prolongamento de si próprios, percebemos que o provérbio “Quem tem filhos tem cadilhos” leva a que muitos ou não tenham filhos, ou os queiram manter num estado de satisfação constante, como se isso lhes desse garantias de tranquilidade.

Nada mais falso. A falta sistemática de colocação de limites e barreiras por parte dos pais, sendo que para os colocar é preciso criar pequenas CRISES familiares, não permite à criança o desenvolvimento daquilo a que chamamos a capacidade de contenção, que não é mais do que a capacidade de auto-controlo.

Dizendo que sim a tudo o que a criança quer para não a arreliar, iniciam um movimento de bola de neve que não tem fim, pois esta colocará a sua exigência sempre mais e mais alto, até ao desespero dos pais, o que acaba muitas vezes por resultar em abandono afectivo pela insuportabilidade do despotismo de que se sentem vitimas.

Saber dosear firmeza e amor é uma questão de bom senso dizem muitos. Mas não é assim tão simples porque estas capacidades parecem ser cada vez mais difíceis de encontrar nos dias que correm. Quem foi educado com elas conhece-lhes as vestes, quem não foi tem na tarefa de educar um trabalho muito mais difícil e como mais vale prevenir do que remediar, talvez fosse bom pedir ajuda profissional.

Pequenos insights. Grandes insights!

Um dia ao navegar na internet encontrei esta imagem e de imediato me fez pensar no meu dia--dia enquanto psicólogo clínico que atende pacientes e que com eles me relaciono. Penso que em certas alturas alguns deles também se terão socorrido do seu "guarda-chuva". De facto o ser humano consegue ser muito inteligente ("humans are clever animals"- Bion), mesmo quando aquilo que mostra é outra coisa, outra postura, outra cena. Penso que quando surgiu a agricultura há milhares de anos atrás, os agricultores desses tempos remotos também deveriam olhar para os céus revoltos e imaginá-los (entre muitos outros pensamentos) mais serenos, sem tanta tensão e turbulência, para que, ao regressar a serenidade do bom tempo, pudessem lançar as sementes e torcer para que elas germinassem e se desenvolvessem. Disso dependia a sua sobrevivência e dos seus filhos.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Acto de Fé

Pensar em fé é pensar em algo que não pertence ao domínio da razão, em algo que nos transcende e a que podemos aceder apenas com a nossa intuição e com os nossos afectos. Algo que portanto nos apela menos a um discurso cientifico, e mais à religião e ao misticismo.

Mas ter fé é o mesmo que acreditar e aparentemente com este sinónimo já não ficamos tão comprometidos na nossa fala.

Acreditar ou não acreditar! Eis a questão!

Os gregos acreditavam nos Deuses. Cada Deus tinha as suas funções, era mais ou menos perfeito, e enredava-se com os seus pares em histórias/mitos que congregavam e organizavam os medos dos homens tornando-os menos ameaçadores. A morte, a sexualidade, o feminino, o conhecimento…

Depois, na sociedade ocidental um Deus único, omnipotente, omnipresente e omnisciente veio tranquilizar, apaziguar os mesmos medos.

Hoje, e sobretudo desde que, como afirmou Nietzsche “Deus está morto”, é o homem que está no centro da questão. Para o bem e para o mal…

Mais só perante as suas angústias, pode ainda acreditar, ter fé na ciência e no conhecimento, ou por outro lado, nos misticismos que curiosamente parecem tornar-se cada vez mais populares a despeito de uma maior racionalidade no mundo pós-moderno.

Parece estar também a agarrar-se cada vez mais a crenças em torno de estilos de vida saudável, e de promessas genéticas pouco realistas, como se pudesse iludir a morte. Mas não será também a Fé em Deus ou nos deuses ou nos misticismos isso mesmo, uma tentativa de ilusão da morte?

E o amor? A relação com o Outro?

Como mostra a história do homem que tentou fugir para Samarcanda e como nos diz Heidegger todos somos seres para a morte. Amaral Dias completa a ideia e diz-nos que é a relação com o outro que nos permite amortecer essa dor. Eu concordo. Por isso não deixa de ser preocupante ver que cada vez mais o homem se relaciona com coisas e menos com pessoas. Cada vez confia menos em pessoas e mais em coisas.

Mais só perante a morte, cada vez mais angustiado e sem relações que lhe contenham estável e duradouramente as angustias... Eis o homem pós-moderno.

Quanto mais decreta o fim da psicanálise mais a humanidade precisa dela e dos seus psicanalistas/psicoterapeutas. Mas é preciso que os psicanalistas eles próprios acreditem na existência da verdade da realidade psíquica, tendo Bion chamado Acto de fé a esta ideia.

É porque alguém cuidou de nós, nos alimentou, nos acalmou e não nos deixou cair, e porque a nossa mente conseguiu interiorizar esses cuidados e o seu significado de uma forma minimamente segura que podemos verdadeiramente acreditar/confiar no outro.

Não deixemos pois de ter Fé na Verdade, no Amor, na Gratidão. Trilhar com o Outro esse percurso. Talvez essa seja a missão mais nobre do psicoterapeuta/psicanalista.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

dois: fé dos actos


Frente a um sempre único Outro, descer a avenida até à praia e partir para um desconhecido. Fazer o mapa.
Saber claramente os sinais, o que é mar, terra, céu, rocha, deserto, glaciar, vulcão, perceber de que lado sopra o vento, qual a ordenação das constelações que nos orientarão nesse desenhar e apagar, desenhar e apagar de novo; os contornos, os relevos de cada mar, de cada bocado de terra mais ou menos fértil, isso terá que ser pensado e revelado a dois.
No encontro de dois que desejam conhecer, estabelecer mapas, perceber os fundos do fundo e marcar no céu cada novo planeta com os contornos do desejo que se vai desenhando.
Mesmo sabendo que o mapa traçado, vivido e sentido será sempre imperfeito, inacabado.
O paradoxo a tolerar parece-me este: tolerar a infinita complexidade de um Outro, das relações que estabelece consigo e com os outros, e tolerar os limites ao que pode ser conhecido, mas que se revela, sendo.
Perceber, descendo a avenida que nos leva à praia, que, mais do que a segurança do saber por outros feito, prevalece o desejo de um dia desembarcar numa nova praia, e perceber que mesmo assim, tudo está por pensar, e que o infinito e o incerto de nós mesmos e do Outro que se nos apresenta, será sempre o que vamos desejar.

Comnetário ao post do Pedro sobre a fé e os dogmas


Pus um comentário ao post do Pedro, mas não ficou registado (mistérios da informática).

Dizia mais ou menos isto:

Con(fe)sso que não percebo nada de fé porque sou mais do género dubitativo, sempre a questionar-me. Enfim, um traço obsessivo que todos nós sabemos que traz vantagens e desvantagens. Às vezes pode ser uma grande carga.
Dito isto, sei reconhecer um dogma quando vejo um, e fujo deles como diabo da cruz! (espero que ninguém leve a mal este trocadilho)

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Os actos de fé em Psicoterapia!


Na minha opinião um acto de fé será acreditar em algo e agir de acordo com essa crença sem a questionar.
Segundo a igreja católica a oração para um acto de fé é a seguinte:
Eu creio firmemente que há um só Deus, em três pessoas, realmente distintas: Pai, Filho e Espírito Santo, que dá o céu aos bons e o inferno aos maus, para sempre. Creio que o Filho de Deus Se fez homem, padeceu e morreu na cruz para nos salvar, e que ao terceiro dia ressuscitou. Creio tudo o mais que ensina a Santa Igreja Católica, Apostólica, porque Deus, verdade infalível, lho revelou. E nesta crença, quero viver e morrer. Ámen.

Agora cabe-me efectuar a definição de psicoterapia, esta poderá ser bastante mais difícil, uma vez que é mais discutida… ao contrário dos dogmas da fé.
Na minha opinião psicoterapia é o processo de evolução cognitiva e emocional que leva ao equilíbrio interno e externo do ser humano. Segundo um velho dicionário de psicologia, a psicoterapia é uma aplicação de técnicas especializadas no tratamento de distúrbios mentais ou de problemas de ajustamento á vida quotidiana.

A questão que se coloca é “será que a terapia deve ser um acto de fé?”
A resposta, na minha opinião, é que não deve ser um acto de fé, porque se o acto de fé engloba a resignação aos dogmas instituídos então deixa de existir espaço para o questionamento de crenças internas e para se questionar a relação terapêutica.
Sem estes pressupostos de disputa de crenças, o processo evolutivo do ser humano fica sem o meio de construir hipóteses alternativas ao seu modo de pensar e agir actual. Ou seja, o encurralamento é inevitável. Com tudo o que isso implica!
Deste modo, o questionar das crenças do indivíduo, uma ferramenta tão usada por psicólogos cognitivos, é a antítese do acto de fé!
O movimento de questionar crenças e atitudes, também pode surgir no sentido do paciente interpelar o terapeuta acerca do processo que está a decorrer… ninguém deve estar dispensado de ser questionado, nem Deus, nem tão pouco os terapeutas. Aliás quando alguns pacientes o fazem é porque o processo está a decorrer muito bem!

A minha sugestão será sempre: questionem-se… mas por favor encontrem repostas!
Senão mais vale num acto de fé, e acreditar que tudo vai correr bem, sem nada fazer para que isso aconteça!

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Com lágrimas e sol

Como aqui já foi abordado, os especialistas do desenvolvimento distinguem as crises normativas (relacionadas com a idade e inerentes ao próprio percurso de vida) das crises não normativas. No seguimento da descrição e reflexão sobre os conceitos, ocorreu-me abordar as crises não normativas e o impacto da diferença e para isso pareceu-me essencial utilizar uma abordagem pragmática de sensibilização uma vez que os factores ambientais também são potenciadores do trauma.

Todos desejamos que os nossos filhos sejam saudáveis e felizes e o confronto com a notícia de que um filho é portador de um diagnóstico incapacitante exige aos pais um mergulho numa batalha adaptativa de recuperação de equilíbrio. O confronto com a incapacidade de um filho (seja ela visual, auditiva, motora, cognitiva, etc.) desperta nos pais uma dor imensa gerada por uma ferida narcísica tremendamente desorganizante e enfraquecedora assim como sentimentos de pânico pela incerteza do futuro. A capacidade para superar tamanho sofrimento dependerá naturalmente da agilidade do aparelho psíquico para elaborar e integrar de uma forma suportável os ataques e as defesas internas que incorrem nestas situações.

O vídeo que se segue retrata de uma forma pedagógica a paralisia cerebral, mas mais do que isso é absolutamente enternecedor. Força e coragem para o Léo e para a sua família e para todas a famílias que passam por situações de crise semelhantes.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

cá estão as tais redes de pesca que usam na Caloura, São Miguel. Têm cores lindíssimas. São as tramas (tecidos), as malhas que a vida tece. Ou elas ou o trauma (a ferida)...

Redes, tramas e traumas

É já a terceira vez que tento escrever um comentario aos post sobre o trauma. Desisto e escrevo um post. À terceira tentativa e a esta hora da noite, já nem me lembro bem do que escrevi.
Mas sei que estava a reler os varios posts sobre o trauma que inauguraram a Janela Clínica e detive-me no da Ana Paula Nascimento, que consegue esse feito raro, e invejável, de ser simultaneamente cientifico e poetico.
"Sinto-me como um casca", dizia-me alguém. Uma casca dura que não deixava passar nada para o exterior, nem vice-versa. Como se a pessoa não pudesse sequer comunicar o sofrimento, não estivesse viva.
E não deixa de ser estranho como duas palavras quase iguais, trama e trauma, têm significados tão diferentes. Trama vem do latim tecido e trauma do grego ferida.
(agora naõ consigo pôr a fotogarfia de uma rede, de uma trama. Coisa aliás muito bonita, uma rede de pesca Caloura, foto tirada pela Julieta. Amanhã tentarei)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Culpa é da Crise... ou da falta de Fé no próprio?


Oiço as pessoas numa constante queixa: “A vida está cara... não há dinheiro para nada... pago uma renda de 600 euros, tenho 2 filhos e ganho apenas 1000... os políticos são uns corruptos... dinheiro aos bancos! Deveriam dar o dinheiro a nós... agora aos bancos!... Votar para quê? São todos iguais! No tempo do Salazar é que era... é tudo uma rebaldaria!...”

De onde nos vem este descontentamento?
Se pararmos na rua e questionarmos os transeuntes certamente nos dirão que a culpa é da CRISE!
Faço uma reflexão e fico com o sentimento de que a CRISE sempre esteve aí... ela paira sobre as nossas cabeças e funciona como uma espécie de explicação “acting out” do nosso descontentamento, das nossas frustrações, dos nossos TRAUMAS.

De que ordem é esta queixa? Ou queixume?
Colocar a explicação no que nos é exterior é um enunciado de fácil acesso, permite-nos uma explicação satisfatória sobre os nossos sentimentos.
A CRISE não é minha, é exterior a mim, somente exterior a mim. Será este o cerne da questão/ões?

De que forma ressoa internamente? É assim tão doloroso que a explicação mais suportável se prenda essencialmente com um outro/ uma outra coisa? Uma aparente explicação? Que TRAUMA este de ser díficil o encontro com a nossa verdade íntima?

Aparentemente a dor/queixa tornou-se pública, globalizou-se... e a culpa parece ser da CRISE... ou da falta de FÉ no próprio?

um: acto de fé


“ – Que me trazes aí, pequeno?
- É para o carneiro, pai.
- Qual carneiro?
....
Chaktour olhou o filho com espanto e piedade. Não disse nada. Nos seu espírito continuamente atormentado, já não havia lugar para uma nova dor. Sentia-se simplesmente esmagado pelo gesto do seu filho. Compreendia agora que nesta criança – da sua carne e do seu sangue – se estava a formar uma miséria consciente e real de que ainda não se tinha apercebido e que para sempre ficaria ligada à sua. O menino crescerá e a sua miséria irá crescer com ele até ao dia em que fraco por sua vez – pode um homem suportar sozinho a sua miséria? – criará um filho que partilhará o peso dela com ele. A única consolação do pobre é não deixar ao morrer um filho pródigo. A ignomínia que lega à descendência é inesgotável”.

Albert Cossery, Os homens esquecidos de deus

sábado, 9 de maio de 2009

do trauma ou sobre as tramas e suas impossibilidades



Falando da vida no resto do universo, e de formas de conseguir encontrá-la, um cientista, percebendo que as técnicas antes usadas se aproximavam sempre muito de procurar a vida como a conhecemos, pensou que a melhor forma para a encontrar seria procurar ordem nos elementos.
Imaginando “...um quilo de massa de letras. Imagina agora que as deitas numa panela. Ficariam todas misturadas. Este é o ponto de equilíbrio da entropia. Ou seja, o ponto de desordem máximo. Mas imagina que alguém forma palavras com as letras, ou separa todos os S por um lado e todos os M por outro. Se espreitares a panela e vires que as letras estão separadas e ordenadas, sabes com certeza que alguém o fez. Pois é isso que a vida faz. Ordena as letras essenciais do Universo, a vida é, então, ordem.”
Pegando neste excerto de um livro de Rosa Montero, pensamos na desordem, no sem sentido, e na inevitável urgência constante de ordem para que a vida, também a interna possa surgir. Mesmo sabendo da alternância que dá o respirar aos modelos de pensamento.
Não é no entanto disto que falamos quando falamos em trauma. O excesso de sem sentido, de desordem, que atinge o sujeito, impossibilitando-o de pensar, de transformar o impacto de algo que é demais.
O excesso de sem sentido, de desordem, elementos desorganizados sem uma matriz, uma trama, um contexto interno, um enredo que os possa acolher e transformar. Este excesso de sem sentido, pode ser causa de estagnação na alternância essencial ordem/desordem, impedindo o funcionamento simbólico produtor de crescimento. Como se o mundo interno, excessivamente atingido se desorganizasse, fazendo com que as palavras se soltassem dos elos de ligação, perdendo a mente a trama, o enredo, o contexto que dá sentido. Na desordem de letras, de elementos de pensamento, devido a um excesso que o sujeito não se vê capaz de conter e elaborar, perdem-se as tramas, os enredos, que possibilitariam a contenção da experiência, esperando em local seguro pela transformação.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Crise


David Zimerman explica…

O termo crise surge com frequência no jargão psicanalítico para referir tanto os momentos culminantes na vida durante as várias fases evolutivas do indivíduo (por exemplo a crise da adolescência, ou da velhice, etc.) como também situações existenciais (crise de um casamento, crise financeira, crise de uma instituição, de uma situação de análise, etc.).
O vocábulo “crise” deriva do grego krinen que significa separar, decidir. Assim um processo de crise terá um destes dois destinos: 1. A situação em crise pode deteriorar-se progressivamente até à extinção; 2. A curto ou longo prazo, haverá uma modificação importante, a qual pode representar um crescimento muito saudável e de progresso notório, sendo no entanto quase sempre dolorosa.
O psicoterapeuta (ou analista) deve ter plenas condições para enfrentar eventuais crises do paciente, porquanto estas estão com bastante probabilidade a representar um significativo momento de importantes mudanças no psiquismo do paciente. Em suma, uma crise pode, de facto, estar a significar “o começo de um fim”; mas também entretanto pode estar a representar “o começo de um novo começo”, com uma nova proposta em relação àquela anterior à crise.

sábado, 2 de maio de 2009

Crise e Trauma


A esmagadora maioria dos autores é unânime em considerar o trauma psíquico uma espécie de ferida, uma abertura ou rasgadura da pele psíquica. Esta ferida dá-se quando os mecanismos que protegem a mente não são capazes de assegurar a manutenção do equilíbrio emocional e ele rompe-se lançando o sujeito num mundo caótico.

Para Klein a vivência de uma experiência traumáticas é equivalente ao sentimento de se ter sido abandonado pelos bons objectos internos que nos protegiam e alimentavam e de termos ficado à mercê de objectos maus e odiosos que foram responsáveis pelo trauma. Para Bion é um aparelho psíquico incapaz de fazer face às exigências que determina a constituição do trauma e a sua gravidade.

Na noção de trauma há uma ideia base que nunca foi verdadeiramente posta em causa e que se configura como pano de fundo e alicerce de todas as grandes abordagens ao trauma. Essa ideia implica, de forma directa, a vivência de uma experiência que foi assimilada pela mente ou personalidade como excessiva. O Excesso é o factor comum a qualquer vivência traumática.

Pensar em tudo aquilo que acontece quando a mente tem que lidar com o EXCESSO leva-nos, então, a uma reflexão com implicações claras e óbvias numa quantidade grande de sistemas e subsistemas que operam de forma imbricada e inter-ligada.
aquilo que acontecerá à mente quando confrontada com o Excesso depende principalmente das características e condições particulares da mente atingida. Não será com toda a certeza a mesma coisa um acontecimento ou vivência excessiva atingir uma mente que tenha um aparelho de identificação projectiva hipertrofiado ou uma outra que tenha um aparelho para pensar os pensamentos altamente eficaz.

Numa mente robusta e com um aparelho para pensar os pensamentos ágil e eficaz tende a viver a crise (qualquer crise) como uma oportunidade para a mudança e para a transformação; uma mente frágil sucumbe com o impacto da crise e esta ganha um potencial traumatizante.