segunda-feira, 27 de julho de 2009

Malos Habitos de Simon Bróss


Um filme bem interessante que fala de diferentes relações patológicas com a comida. A relação da freira sustentada numa lógica de pensamento mágico. A relação com a comida é uma relação de sacrifício que no pensamento mágico origina “milagres” de cura. Ao comer alimentos repulsivos, demasiado salgados, azedos, estragados está a consumar um sacrifício que se irá traduzir na salvação da tia doente, como na sua infância rezar quando o pai se engasgava quase até à morte, lhe fez criar a ilusão de que a sua reza tinha tido o poder de salvar o pai da morte eminente. É, no fundo, uma relação obsessiva em que a comida é um mero mediador do efeito mágico. Da relação sado-masoquista com a comida em que come alimentos deteriorados ou demasiado condimentados, passa à restrição alimentar que mantém a dominante sacrificial.

A anorexia da mãe traduz-se numa tirania perante a filha gorduchinha controlando-lhe a comida e exigindo-lhe exercício físico demasiado frequente que pratica em si propria, revelando a insuportabilidade de uma relação de prazer com a comida e a obsessão pelo controlo. O marido incapaz de se relacionar sexualmente com o corpo demasiado magro da mulher envolve-se com uma rapariga que gosta de comer e de sexo.

A tensão interior dos personagens intensifica-se e rompe-se o ciclo destrutivo com a morte ou a aproximação à possibilidade de homicídio/suicido. É um filme que exprime a força destrutiva das dinâmicas obsessivas centradas nas relações com o corpo e o poder (enquanto antídoto da impotência).

A arte da narrativa!


Muitas vezes encontro pessoas com histórias de vida muito bem organizadas e coerentes. Outras vezes encontro uma emocionalidade que impede o acesso á própria história.

Ora isto deixou-me a pensar, se por um lado os pacientes adultos com uma narrativa mais organizada estão mais funcionais, devido as suas defesas ligadas á intelectualização, por outro a dificuldade ou incapacidade de experiencias emoções deixa-os num sofrimento surdo que os impede de ter algum prazer nas suas vivências quotidianas. Algumas pessoas já começaram a sessão dizendo que não conseguiam sentir emoções.

Mas aqui a questão central é a narrativa.
Por vezes o recontar da história permite uma distância que ajuda a organizar, por outro lado o repetir de algo pode levar a um estado de auto-comiseração que afundará a pessoa no seu papel de vítima.

Tarefa difícil para o terapeuta, por um lado ajudar a recontar uma história, por outro, mudar o significado emocional para o paciente, para que este possa seguir em frente.

No fundo, uma narrativa bem sucedida, é aquela que a vítima se torna o herói sobrevivente… não é isso que as crianças fazem sempre!

sábado, 25 de julho de 2009

Afinal...quem tem medo do lobo mau ?


Há algum tempo atrás escrevi um post, que aqui vou reproduzir, sobre a forma como as histórias da nossa infância têm vindo a ser distorcidas a fim de supostamente diminuir a violência nelas contida. A história do capuchinho vermelho é uma das que tem sofrido mais alterações.

Brenman, na sua tese sobre a relação das crianças com as histórias infantis defende que, contrariamente ao que tem sido defendido por muitos, é bom que as histórias contenham personagens maus e violentos, tipo lobo mau, bruxas, etc, pois as crianças precisam aprender a lidar com e a vivenciar essas emoções.

O que aqui me suscita maior reflexão é a tendência crescente para educar as crianças de forma asséptica, a qual por sua vez parece corresponder a uma cada vez maior preocupação parental em expor os filhos a algo que sempre fez e sempre fará parte da natureza humana, como é o caso da agressividade e da violência.

Ora porque será que os pais andam tão preocupados com a violência e tão envolvidos em estratégias educativas para a neutralizar senão porque eles próprios se mostram cada vez mais incapazes em lidar com esses sentimentos?... O resto corre por conta dos mecanismos de identificação projectiva, visto que a forma como os pais intuem os filhos depende das partes de si próprios sobre eles projectadas.

Desta forma, o preocupante não é a violência presente nos contos infantis mas a violência latente presente no interior de cada mãe ou pai excessivamente preocupado com a violência. Pois dos progenitores a criança não pode desviar os sentidos…

Assim, preocupante para mim é a interiorização silenciosa que a criança é forçada a fazer da violência contida dos pais e que vai constituir as bases de identificação de que tanto precisa para construir a sua identidade.

Muito mais pacifica em termos desenvolvimentais, por paradoxal que possa parecer, é a violência mais turbulenta, mas sobretudo visível, que permite à criança jogar os seus conflitos, fazer à vez de vitima e de carrasco, identificar-se a uns e/ou a outros, encenando movimentos de aproximação e de afastamento segundo os afectos nela mobilizados.

Claro que se nos colocam muitas questões relacionadas com este tema da violência presente nas referencias culturais, sobretudo as que dizem respeito ao simbólico e à metáfora e à forma como a sociedade de hoje os vive e os transmite à criança, mas isso é tema de outra discussão.

Deixo-vos com duas imagens, o lobo mau de barriga aberta, e uma mãe/pai horrorizados com a barriga aberta do lobo mau... Não será com certeza difícil perceber qual é a que pode fazer mais estragos na mente de uma criança ...

MÃE, CONTA-ME UMA HISTÓRIA




ola Eliana


esse livro do Bruno Bettelheim foi-me utilíssimo quando a minha filha era pequena. Não que lho lesse, claro (:)), mas ajudou-me a perceber o simbolismo por detrás dos contos e lendas, às vezes assustadores, que se vão narrando às crianças (espero eu que ainda haja quem o faça).


Esses contos tinham uma função essencial que era a dos medos, terrores e fantasias poderem ser vivenciados na presença contentora da mãe (ou doutra figura parental). Uma espécie de faz- de-conta que me parece essencial no crescimento da criança. Até o complexo de Édipo está lá, como Bettelheim nos explica.


Vejo por aí à venda uma literatura infantil asséptica que não indicia nada de bom e que me parece que não permite à criança vivenciar experiências estruturadoras da sua identidade. Mas pode ser que esteja a ser pessimista, não sou especialista... Em contrapartida, e embora nada me mova contra a televisão ou outras tecnologias, consta-me que há desenhos animados assustadores e muito violentos, especialmente na ausência de alguem que explique e sossegue.


A minha filha tinha os seus contos preferidos, que nem sempre coincidiam com os meus (isto é, de quando eu era criança). Eu sempre adorei a história do capuchinho vermelho (carregadinha de simbolismo - quem pode ficar indiferente perante aquele lobo mau disfarçado da avózinha) mas supeito que ela preferia a história da Goldilocks (Caracolinhos loiros, numa das versões portuguesas), em que a miúda entra em casa da família dos ursos (pai, mãe e filho) na ausência destes. O conto tinha obrigatoriamente de ser narrado imitando as vozes do pai, da mãe e do filho ursinho. E da menina, que no fim foje por uma janela, depois de ser deitado (!) na cama de cada ums das personagens, sentado nas suas cadeiras e comido das suas tijelas.


Ah, a curiosidade infantil... O Freud chamava-lhe instinto escopofílico. É conveniente que a criança possa exercitá-lo e orientá-lo para a criatividade.

AINDA ACERCA DA NEUTRALIDADE

http://www.apa.org/monitor/2008/10/privacy.html

Para os interssados, este arigo da revista da APA sobre os psicoterapeutas, os clientes, a net e as redes sociais, é interessante.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Conta-me uma história...

Conta-me uma história, desses personagens inventados, que personificam os meus dramas e conflitos internos e assim, me ajudam a crescer. Conta-me uma história porque ela me permite compreender quem sou eu e me ajuda a descobrir o outro, entre esses bravos guerreiros e jovens princesas, que moram numa terra muito muito distante e acolhem, gentilmente, as minhas identificações e projecções. Traz-me também na tua história o nome das minhas angústias, dos meus medos em forma de bruxa, dos perigos em forma de lobo e aqui, enquanto me lês a história e estamos seguros, treinamos a morte, o susto, o abandono… mas também experimentamos, encenando, a alegria, a vitória, o amor... Ensina-me a tua moral, o que é o bem e o mal, de que são feitos os alicerces desse reino, que me dás a conhecer. Embala-me com a tua voz por entre os secretos lugares do meu inconsciente e oferece-me o tempo e o espaço para que na fantasia eu construa o meu imaginário.

Diz Bruno Bettelheim*:
"(...) os contos de fadas são portadores de mensagens importantes para o psiquismo consciente, pré-consciente ou inconsciente, qualquer que seja o nível em que funcione. Lidando com problemas humanos universais, especialmente com os que preocupam o espírito da criança, as histórias falam ao seu ego nascente, encorajando o seu desenvolvimento, enquanto, ao mesmo tempo, aliviam tensões pré-conscientes ou inconscientes. À medida que as histórias se vão desvendando, elas dão crédito e corpo conscientes às tensões do id e mostram os caminhos para satisfazer as que estão alinhadas com as exigências do ego e do superego."


* no seu livro A Psicanálise Dos Contos de Fadas

domingo, 19 de julho de 2009

Neutralidade versus Auto-revelação!


Neutralidade do Terapeuta.
Este conceito já foi definido de vários modos pelas minhas colegas. Como todos os conceitos existe um reverso deste conceito.
Ora nem todas as vertentes da psicoterapia exploram da mesma maneira este conceito, uma das formas de “reverter” esta neutralidade é a auto-revelação.
Esta ferramenta terapêutica pode ser muito poderosa, no entanto pode colocar o terapeuta numa posição frágil, ao revelar coisas do próprio a determinados pacientes. Para alguns isso é totalmente contraproducente, por exemplo quando há questões ligadas aos limites nos relacionamentos, “é um tiro no pé!”. Para outros é um modo de aproximar e de modelar o seu comportamento a algo mais normativo.
Outro aspecto a ter em conta, é a utilidade da neutralidade e da auto-revelação. Se por um lado a neutralidade estimula a projecção, por outro lado a auto-revelação também o pode fazer, a questão chave passa a ser, como aliás em tudo em psicoterapia, o que é melhor para o paciente?
Dá que pensar não dá?

quarta-feira, 15 de julho de 2009

dar espaço: da neutralidade



Há o que fundamentalmente somos, e o mais ou menos visível desse fundamento, na forma como falamos, calamos, vestimos, decoramos uma sala, e quanto a isso nada há, nem me parece que tenha que haver, nada a fazer. Somos.
Depois há a necessidade de existir, marcar, vincar o espaço de acessórios-defesa contra angústias do próprio ou reflexo das do outro, que se nalguns momentos muito específicos da relação podem ser importantes, noutros retiram espaço.
Parece-me que no que pode retirar espaço à liberdade de outro (consciente, mas sobretudo inconsciente) é que a neutralidade se coloca como questão importante a ser reflectida.
Ser o menos possível, sendo no fundamental: dar espaço.

sábado, 11 de julho de 2009

No comments?

Obrigada à duas Elsas pelos comentários. Em particular o da Elsa Madeira pareceu-me uma síntese exaustiva da problemática em causa e uma defesa da postura da neutralidade.

Mas gostava de saber a opinião de mais pessoas, designadamente em relação à net e à exposição pública. O que significa colaborar num blog? Consome tempo, esforço, às vezes é frustrante, os nossos nomes tornam-se mais googláveis e portanto mais criticáveis, etc.
Será que querem levar a neutralidade tão longe que não se querem pronunciar neste blog? Não me tinha ocorrido, mas agora que penso nisso... Hmmm... Hmmm...Seria o cúmulo da neutralidade - acho que até se poderia designar mesmo por abstenção.
Bem, deixo aqui esta nota humorística.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Sobre neutralidade


O rápido desenvolvimento global verificado nas últimas décadas, exige alterações e adaptações nas mais diversas áreas do saber.

A Psicanálise não é excepção.

Porém, no que diz respeito ao conceito de neutralidade, julgo que este se mantém actual, sendo um pilar na conduta psicanalítica.

Apesar de Freud não ter usado o termo neutralidade ao longo da sua obra, este está implícito nas suas formulações, como um princípio fundamental na relação terapêutica.

Desde a consciencialização da importância deste conceito muitas alterações e adaptações se têm verificado ao longo dos tempos.

Contudo a sua importância prevalece com vista a reduzir o mais possível todo e qualquer efeito parasita presente na relação terapêutica ante o desenrolar das acções psíquicas do paciente.

sábado, 4 de julho de 2009

Da neutralidade


Com as transformações que o mundo tem vivido sobretudo nos últimos 50 anos, parece-me inevitável que se coloquem em causa os velhos conceitos, aos mais variados níveis. Na psicanálise estes questionamentos são de extrema utilidade não só no sentido de estimular, através da reflexão, o nosso crescimento como também como um meio para alcançar um melhor desempenho profissional, mediante uma melhoria da adaptação das teorias à prática.

Olhando para as transformações quer sociais quer individuais que se têm vindo a observar interrogo-me sobre as suas invariantes. Ou seja, no fundo e para além de todas estas mudanças o que é que permanece ou deveria permanecer igual para o bem da humanidade em geral e dos seus indivíduos em particular. Bom, mas isso daria já outra reflexão!

Sobre os velhos ideais aplicados ao trabalho psicanalítico, o que importaria agora aqui pensar é quais deveremos ou não seguir, ainda que sempre conscientes de que só conseguiremos deles meras aproximações. Sócrates ao defender a Verdade, no século V a.c., foi condenado à morte. Outros autores ao longo da história, e mais recentemente Bion, continuam a afirmar que existe uma Verdade ultima, ainda que dela só consigamos levemente aproximar-nos.

A meu ver, face à neutralidade do analista passa-se algo de semelhante. Freud afirmava que este deve ser como um espelho que reflecte o que o analisado lhe mostra, com um mínimo de interferência possível da sua parte. Ao dize-lo está consciente de que é fácil que essa interferência ocorra e que é humano que assim o seja, mas que o nosso esforço deve ser no sentido de criar condições, através da nossa auto-reflexão e da nossa ética, para que essas sejam reduzidas ao mínimo.

Trata-se, dito de forma muito simples, de evitar a interferência de ruídos que iriam diminuir a nossa capacidade de ouvir o que o nosso paciente nos diz. Ruídos estes, uns oriundos do nosso mundo interno, através da nossa própria contra-transferencia, muito útil no entendimento do que se está a passar em cada momento do processo e outros, provocados por um excesso de nós, que levaria o paciente a sentir menos espaço para entrar e a nós a ter menos espaço interno para o receber. Claro que com as neuroses isto remete para uma maior ou menor dificuldade de o paciente transferir sobre nós os seus conflitos, mas mesmo com patologias limite ou psicóticas penso que é mais importante que estes nos sintam mais como continente e menos como conteúdo.

No fundo acredito nos benefícios da neutralidade como ideal a seguir, mas com as devidas adaptações, quer no que remete para a articulação com a psicopatologia, pois a neutralidade com a neurose não é igual à neutralidade com a patologia psicótica, e aliás a própria contra-indicação do divã é disso exemplo, quer no que remete para a exposição publica, a qual nos tempos que correm, com a Internet, seria quase impossível evitar.

Mas sempre com a neutralidade no horizonte não deixo de ter alguns cuidados com aquilo que escrevo ou revelo, e de me questionar sobre o que os meus pacientes pensarão ou sentirão se/quando confrontados com essa informação.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

AS REGRAS


Tinha proposto para o início de Julho a discussão de um tema que me parece muito actual: o da aplicação da velha regra da neutralidade (e não digo velha no mau sentido; eu adoro, como acho que todos sabem, o velhinho das barbas).

Ou seja, será que ela faz ainda sentido, num tempo em que a hiperconexão cibernética, por um lado, e a apatia cívica, por outro, puxam em sentidos contrários (ou no mesmo, quem sabe)?
Julgo que todos têm já, divulgado pela Ana Almeida, o texto de Adrian Liberman, psicanalista venezuelano. Liberman fala, nese texto de ódio e de polarização política. Há dias houve um golpe de estado nas Honduras, de que resultou uma condenação conjunta dos USA e da Venezuela. Facto insólito e que dá que pensar.
E aqui, como é?
Devemos tomar posições públicas? De certo modo, estamos a fazê-lo, sempre que escrevemos neste ou noutro blog, jornais, revistas, livros, etc.
Acontece-me cada vez mais aparecerem-me pacientes que já me googlaram antes da primeira consulta.
Como interpretar a regra da neutralidade nestas circunstâncias? Será a mesma que era no tempo de Freud? Recordo que ele nunca deixou de tomar posições (a carta sobre o sionismo, de 1930, é um excelente exemplo, mas há muitos mais).
Fico à espera das vossa reflexões.